"O termo androdicéia representa a assimilação de uma ideia, um discurso, enfim, uma ideologia masculina proclamada e assumida a partir do discurso feminino. Em outras palavras, a mulher assume a defesa do ponto de vista do homem, sem que se perceba uma defensora do ponto de vista a partir desse prisma"
Por João Pedro Gonçalves*
Introdução
Busquei um termo que me desse a
ideia da justificação das coisas e práticas a partir de uma cosmovisão do
masculino. O uso que dou ao termo significa a representação do discurso
feminino a partir de uma visão do masculino. O termo liga-se ao conceito de
ideologia, no sentido negativo ou marxista, ou seja, a ideologia é o ato de
encobrir ou de estar encoberto; é a capacidade de se acreditar em uma ideia,
defendê-la, abraçar uma visão de mundo sem que se saiba exatamente a origem da
mesma. A ideologia encobre dos seus defensores e “crentes” o real significado
daquilo que defendem. Para se entender esse tipo de representação do masculino
no feminino, precisamos lembrar de dois conceitos básicos: dominação e
ideologia.
Os tipos de
dominação
Dominação, segundo Weber, é a
“probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas dentro de
determinado grupo”. O fundamento de toda dominação, começa com uma crença
básica: o prestígio do dominador. A dominação pode ser exercida por costume, afinidade ou afeto para com o
dominador, interesse material ou por motivos ideais. Não se descarta a
possibilidade de os dominados terem interesses e vantagens na relação com o
dominador. Em todos os casos, deve existir alguma vontade em obedecer. Por
outro lado, não basta o voluntarismo do dominado; o dominador deve cultivar a
crença da legitimidade do seu domínio entre os súditos.
Para Weber, há três tipos de
dominação: Dominação Legal, Tradicional e Carismática. A Dominação legal, é
aquela que se exerce em virtude de uma lei, de um estatuto; o senhor é
obedecido por causa de uma regra que define quem e em que medida alguém deve
ser obedecido. O senhor é colocado em posição de mando segundo uma regra e de
acordo com uma competência concreta. Políticos, uma vez eleitos, juízes e
militares, dominam por causa da dominação legal.
A Dominação tradicional, é aquela que se baseia na crença da
santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de alguém. Esse tipo é mais
puramente representada no patriarcalismo. O senhor ordena e os súditos
obedecem. A tradição também dita as normas. Dominação
carismática, é aquela em que a devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus
dotes naturais são os critérios predominantes do exercício da sua liderança.
Esse poder pode ter sido conquistado por causa do seu poder intelectual ou da
sua oratória. Os políticos são continuamente reeleitos por causa do seu
carisma. Esta dominação se dá por causa do carisma que se exerce sobre os
liderados.
Dominação
segundo Bourdieu
Para Bourdieu, a dominação existe em qualquer nível de
relação entre os indivíduos. No seu exercício, as pessoas buscam formas
estratégicas que sejam eficazes na criação e manutenção dessa dominação. Essas
estratégias, próprias do universo social, são mediatizados por mecanismos
objetivos e institucionalizados. A relação entre pessoas, para esse autor, é
tratada como economia, porque as estratégias de instauração e manutenção
duradoura são custosas em termos de bens materiais, serviço ou tempo.
Um sistema de dominação pode ser sustentado por mecanismos ideológicos,
ao se manter escondido ao mesmo tempo em que contribui para a reprodução da
ordem social e da permanência da dominação. Às vezes, as pessoas se deixam
dominar com um silêncio cúmplice. Quando em uma relação de dominação, os
mecanismos objetivos fazem com que os dominadores não tenham necessidade de se
servir deles, tanto mais indiretas serão as estratégias objetivamente
orientadas em direção à reprodução.
As estratégias de manutenção da dominação podem ser materiais ou
simbólicas. No primeiro caso, o senhor domina através de uma dívida impagável
ou pela apropriação total de seus bens. A perpetuação da relação dominante
depende da habilidade do senhor em manter o servo na posição de subserviência.
Outra estratégia da manutenção da relação está na espera de uma fidelidade que
é exigida por causa da honra.
Nas relações que existam a dominação simbólica, elas são tão ou mais
econômicas que a violência econômica. Quer dizer, dia após dia, é requerido do
senhor, que ele dispense cuidados, atenções e mantenha em dia os laços éticos,
afetivos e econômicos. Por exemplo, ele faz com que o subalterno participe de
alguma maneira dos interesses do senhor. Este trata as coisas daquele como
suas, pois o senhor o permite agir e pensar que a coisa é também sua.
Esse tipo de relação cria dois tipos
básicos de dominação, dois meios de segurar, vincular alguém a si: a dádiva ou
a dívida. A dívida segura a pessoa abertamente de forma econômica. A dádiva
(simbólica, irreconhecível, eufemizada) vincula a pessoa por meios de
"obrigações morais e afetivas criadas e mantidas pela troca". As
formas generosas da dádiva deixam na incerteza a "lei universal do
interesse" e colocam ênfase no próprio ato de fazer, como se na ação
estivesse algum tipo de isenção de interesse. O que há, na verdade, é uma
negação, ou denegações do interesse.
A dádiva cria a dívida atrelando o
súdito ao senhor. Doa-se para dominar. Uma dádiva cria a obrigação de pagar;
não em termos financeiros, mas através do reconhecimento, da gratidão, do
respeito, das honrarias, do código de honra, onde se espera do súdito que se
mantenha fiel ao senhor. Ao mesmo tempo em que o senhor domina os súditos, ele
precisa, além das estratégias que perpetuam o seu domínio, de grande de
habilidade para a manutenção da dominação. Uma dessas habilidades se evidencia
na dispensa de cuidados; outra, torná-lo sócio do seu negócio para mantê-lo
preso ao senhor.
Ideologia
A ideologia está ligada a processos
de inculcação cultural, propagandística. Quem participa de uma cultura tem
dificuldade de ver a si mesmo enquanto participante de uma ideologia, ao passo
que se torna um expert em descobrir a ideologia do outro. Daí a
dificuldade de se ver a si mesmo como um sujeito ideológico. O demônio é sempre
o outro.
É nesse sentido que uso o termo
androdicéia, que representa a assimilação de uma ideia, um discurso, enfim, uma
ideologia masculina proclamada e assumida a partir do discurso feminino. Em
outras palavras, a mulher assume a defesa do ponto de vista do homem, sem que
se perceba uma defensora do ponto de vista a partir desse prisma. A mulher fala
e raciocina como homem, sem se perceber homem. Enquanto porta-voz da fala
masculina, defende sua própria feminilidade.
A androdicéia é uma forma sutil de
dominação masculina, pois a mulher, que discursa a fala do homem, não se
percebe masculinizada, nem masculinizante, quer dizer, homologadora e
autenticadora do discurso do homem. Para efeito de ilustração do termo, segue-se
diversos exemplos desse tipo de chauvinismo machista na cultura brasileira.
Práticas da
androdicéia na cultura
O primeiro exemplo é uma anedota que
se conta de um vizinho que, ouvindo a vizinha gritar por socorro, sai em defesa
da mulher. Ao chegar, a mulher que antes gritava, se junta ao marido para
espancarem, juntos, o vizinho intruso. A seguir, a mulher se volta para o
marido e pede que o mesmo continue a lhe bater. Algo semelhante aconteceu
alguns tempos atrás com uns vizinhos meus. Os amigos, já um tanto altos por
causa da bebida, o marido de uma delas resolveu acertar as contas com a esposa.
Ela começou a gritar por socorro. Chamei a polícia. Quando chegaram, o policial
gritou a partir do térreo do prédio onde estava o marido que espancava a esposa.
Todos os envolvidos – inclusive a espancada - negaram a tentativa de agressão.
A androdicéia está no imaginário da
nossa cultura reforçada pelos filmes e novelas. O protagonista, geralmente
homem, aparece como marido de uma megera, caricaturada como rabugenta, velha,
feia e ultrapassada. Do outro lado, uma bela moça, inteligente, atenciosa, que
representa tudo o que o galã sempre desejou e nunca teve. A ideia é fazer com
que os espectadores desejem a separação do casal para que o galã encontre o
verdadeiro amor.
Androdicéia
religiosa
Para a análise da versão religiosa,
é necessário abrir-se um parêntese para contextualizar o pensamento cristão. O
imaginário cristão em todos os níveis – católico, ortodoxo e protestante -
sedimentou a crença de que da mulher procede todos os tipos de males da
humanidade. Em virtude disso, sempre foram consideradas como uma companhia
perigosa, meio diabólica. Na Idade Média, os homens chegaram a persegui-las no
tempo da sua menstruação. Não sabendo qualquer coisa da fisiologia feminina, os
sábios e teólogos da época afirmavam que a mulher sangrava por causa de um
pacto que tinha com o demônio. Da mesma forma, quando engravidavam, era porque
tinham sido possuídas de algum espírito maligno. Com isso, por volta do século
XIII, mulheres menstruadas ou grávidas tinham que viver escondidas, reclusas ou
fora da comunidade. Muitas delas buscaram refúgio nas florestas e cavernas, o
que reforçou ainda mais o imaginário masculino da possessão demoníaca das
mulheres.
No dos religiosos, diferentemente
das novelas e filmes, um casal com problemas conjugais terá na mulher a busca
da origem de toda a infelicidade do homem. Inconscientemente, acusa-se a mulher
e se lhe atribui a culpa do mal relacionamento entre os dois. Os mais
espirituais vão querer saber o que a esposa fez de errado, se deixou de cumprir
com suas obrigações de mulher e esposa, qual o seu pecado. Não é raro também
que se busque uma explicação arqueológica para o fato tentando-se achar uma
terceira pessoa que, aproveitando-se do fato de o homem estar insatisfeito no
casamento por causa da esposa, tenha se aproveitado do homem, que, carente, foi
seduzido e engodado pela “outra”.
Nos dois casos, o homem é
praticamente eximido de qualquer tipo de julgamento pelos membros da comunidade
religiosa. O mau relacionamento ou é culpa da esposa que não soube cumprir com
o papel de esposa, ou atribui-se à “outra” todo o acontecido. Nesses casos, os
irmão já estarão previamente comprometidos a tomar o partido e se colocarem
numa posição a favor do homem. Mais estranho ainda é que, dificilmente, as
mulheres também não tomarão a posição de inocentar o homem e punir a ambas as
mulheres: a esposa e a “outra”.
A partir desse contexto religioso,
as mulheres mais novas, viúvas, mães solteiras, separadas ou com problemas
conjugais no seus casamentos são inevitavelmente vistas como suspeitas,
ameaçadoras, concorrentes, um perigo à vista, inimigas das outras e seus
casamentos na comunidade religiosa. É preciso blindar, portanto, os homens, os
maridos dessas mulheres. Para tanto, se necessário for, as mulheres que se
encontram nessa posição, devem ter o convívio diminuído a praticamente zero,
afastadas da comunidade. Como uma ameaça a todo casamento, é necessário
eliminar a futura concorrente, mesmo que seja uma concorrência apenas
imaginária.
Ao homem se perdoa os seus deslizes.
Até mesmo porque, segundo o imaginário feminino, ele deve ter tido as suas
razões. As mulheres não se sentem, em todo esse processo, possuídas do
pensamento machista. Mas, no fundo, ao defender os homens contra as espoas, e
contra a “outra”, estão reproduzindo a ideologia do homem. Um exemplo clássico
é que, quando há separação, ao se buscarem as razões de se ter uma mulher
separada no meio da comunidade religiosa, o pressuposto inicial será atribuído
a um erro feminino, da esposa.
Se por acaso um casal de religiosos
vir a se separar, espera-se logo que o homem encontre a sua parceira – para não
viver uma vida de pecado. Mas a mesma lógica não vale para a mulher. A ela, por
todos os argumentos possíveis, e principalmente teológico, se imputará a
continuidade da condição de casada, pois a separação do marido sempre será
interpretada como temporária. Com isso, obriga-se à mulher manter-se pura,
esperar, sem contrair novas núpcias, muito menos namorar. Ela será condenada a
viver como uma “viúva de ex-marido vivo”.
Nas comunidades religiosas, só os
homens se separam. A mulher deve permanecer no estado de casada, mesmo estando
condenada a morar só pelo resto da vida. Demore o tempo que demorar, ela deve
aguardar e orar pela volta do “marido”. Profecias, versículos bíblicos e
orações lhes serão oferecidos como promessa e esperança da volta do homem, que
continua sendo seu marido. Se os anos demorarem muito e o marido não voltar conforme
as profecias, ela ainda será culpada, pois que foi a sua falta de fé ou sua
dúvida que não fez com que o marido voltasse.
Representações sociais, inconsciente
coletivo, ideário, imaginário ou seja que termo se dê a isso, as mulheres se
pensam a si mesmas, e principalmente pensam as outras pelo pensamento do homem.
Já não bastasse a dominação feita diretamente pelo próprio homem, a prática
feminina é ainda mais homologante e mumificadora dessa dominação, pois serão
elas que cuidarão que a dominação masculina seja imposta e de forma silenciosa
e indolor. São as mulheres o principal instrumento do homem para perpetuar a
dominação masculina. E, quanto mais religiosa for a mulher, mais tenderá a
homologar tal situação.
As mulheres negam às próprias
mulheres o direito de serem mulheres, a possibilidade da liberdade, pois que do
homem se espera que ele seja o conquistador, o que pede a mão, o que toma a
iniciativa, o que empresta o sobrenome, o que dá o nome ao casal, o que tem
direito à vida e à morte da mulher. Ao homem cabe o ganhar mais, ditar as
normas, dar a palavra final, negar, denegar. Ele começou; que ele termine a
relação, o namoro e o casamento.
Assim, este mundo é uma geração de
homens. Uma cultura de mulheres-homens, que pensam como os homens, que, para
serem femininas, precisam defender o pensamento masculino. Mulheres no corpo,
mas homens na cabeça; voz feminina, com tom masculino. A mulher é um homem num
corpo de mulher. A mulher, para ser aceita no sociedade dos homens, precisa
pensar como homem, vigiar e punir as outras mulheres. Nessa condição, a mulher,
símbolo da fraqueza, do pecado, do engano, deve sempre ser vigiada, olhada com
suspeita, vigiada, não mais pelos homens, mas por outras mulheres.
A questão ideológica e da dominação
denegada, branda, reside no fato de que não são mais os homens os que farão
todo esse procedimento de punição social, psicológica e religiosa às mulheres.
Eles fazem isso através das próprias mulheres. Nesses casos, não é de admirar
que os homens pastores neguem às mesmas a posição e papel das pastoras. As
próprias mulheres se encarregarão de fazer o trabalho contra as mulheres
pastoras. Elas fazem isso convidando os pastores homens a falarem em seus
eventos.
* Pastor João Pedro Gonçalves Araújo, bacharel em Teologia (FTBB, DF), Bacharel em Filosofia (UnB), Mestre em Ciências da Religião (UMESP), e Doutor em Sociologia (UnB). É professor de Filosofia e Sociologia na Faculdade Evangélica de Brasília e professor de Teologia na FTBB (Brasília). É pastor da Igreja Batista no Lago Sul, Brasília. Veja outro texto do autor A BÍBLIA É MACHISTA?
* Pastor João Pedro Gonçalves Araújo, bacharel em Teologia (FTBB, DF), Bacharel em Filosofia (UnB), Mestre em Ciências da Religião (UMESP), e Doutor em Sociologia (UnB). É professor de Filosofia e Sociologia na Faculdade Evangélica de Brasília e professor de Teologia na FTBB (Brasília). É pastor da Igreja Batista no Lago Sul, Brasília. Veja outro texto do autor A BÍBLIA É MACHISTA?
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