NEM CONTRA NEM A FAVOR *
Uma reflexão bíblico-teológica sobre a consagração de mulheres ao ministério pastoral batista
Dr. Josué Mello Salgado
Há anos o tema consagração de mulheres para o ministério pastoral ocupa as páginas de “O Jornal Batista” e o pensamento de muitos irmãos.
Desejamos ser fiéis à Palavra do Senhor, normativa para a nossa fé e prática, mas também não queremos com a Bíblia nas mãos compactuar com a discriminação de gênero, que também não se coaduna com a nossa fé, nem com a Palavra de Deus. Não desejamos folhear as páginas de nossa Bíblia com as mãos manchadas de sangue!
Minha posição pessoal sobre a consagração de mulheres ao ministério pastoral batista é de não ser nem a favor e nem contra. Tal posição não é de modo algum evasiva, como pretendo demonstrar, pois tem três fundamentações bíblico-teológicas:
1) A PRERROGATIVA QUANTO À CHAMADA PARA O MINISTÉRIO PASTORAL É INALIENAVELMENTE DIVINA.
Em Mateus 9:36-38 lemos que Jesus, vendo "as multidões, compadeceu-se delas, porque andavam desgarradas e errantes, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: Na verdade, a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a Sua seara". O que Jesus ensina é que o nosso papel é rogar, e o do Senhor da seara, que obviamente não somos nós, é mandar trabalhadores.
A Declaração Doutrinária da CBB afirma em seu capítulo sobre o Ministério da Palavra: “Todos os crentes foram chamados por Deus para a salvação, para o serviço cristão, para testemunhar de Jesus Cristo e promover o Seu reino, na medida dos talentos e dos dons concedidos pelo Espírito Santo. Entretanto, Deus escolhe, chama e separa certos homens, de maneira especial, para o serviço distinto, definido e singular do ministério da Sua Palavra (grifo meu). (,,,) Quando um homem convertido dá evidências de ter sido chamado e separado por Deus para esse ministério, e de possuir as qualificações estipuladas pelas Escrituras para o seu exercício, cabe à igreja local a responsabilidade de separá-lo, formal e publicamente, em reconhecimento da vocação divina já existente e verificada em sua experiência cristã” (PACTO E COMUNHÃO. Rio de Janeiro: Convicção, 2010, p. 26 – XI – Ministério da Palavra).
Na Bíblia, na língua portuguesa, e mesmo na Declaração Doutrinária da CBB (conf. p.ex. cap. III - O Homem, pg. 18), o substantivo masculino “homem” é também usado para se referir ao ser humano, independente do gênero, masculino ou feminino.
À luz do ensino de Jesus, e também da nossa Declaração Doutrinária, questiono a nossa competência como seres humanos para decidirmos se Deus pode ou não chamar mulheres para o pastorado, pois que mandar, escolher, chamar e separar são prerrogativas exclusivamente divinas!
Nós servimos ao Deus que afirma: "Eu sou o SENHOR; este é o Meu nome; a Minha glória, pois, a outrem não darei, (Isa 42:8 ACF)". A glória de mandar, escolher, chamar e separar é somente de Deus!
2) A TEOLOGIA DA CRIAÇÃO DESAUTORIZA TANTO A SUBALTERNAÇÃO QUANTO A SUPERIORIDADE DA MULHER EM RELAÇÃO AO HOMEM.
“Disse mais o Senhor Deus: não é bom ao ser humano ser só; far-lhe-ei um socorro que lhe corresponda como uma imagem do outro lado do espelho” (tradução livre - Gênesis 2. 18). O foco do texto em epígrafe é claramente a humanidade, o ser humano genérico! Esta interpretação é evidente, tendo em vista o uso do termo hebraico adam para designar homem, abrangendo ambos os gêneros, em preferência a zakar (Gênesis 1. 27) ou iysh (Gênesis 2. 23) ambos usados exclusivamente para designar homem, gênero masculino. O termo adam ao lado de enosh (Salmo 8. 4) é, preferencialmente, termo designativo de ambos os gêneros (homem e mulher) como fica claro em Gênesis 5:1-2: "Este é o livro das gerações de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. Homem e mulher os criou; e os abençoou e chamou o seu nome Adão (adam), no dia em que foram criados." Não é sem razão que a Bíblia judaica traduz o texto de Gênesis 2:18 assim: "Adonai, Deus, disse: Não é bom que a pessoa fique só." (Bíblia Judaica Completa: O Tanakh (AT) e a B’rit Hadashah (NT). – São Paulo: Editora Vida, 2010). Posteriormente adam passou a ser também o nome próprio do primeiro homem: Adão. Tal compreensão é fundamental para entendermos que o Deus revelado nas Escrituras não é machista e nem feminista. Ele não concentra sua atenção e preocupação sobre apenas um dos dois gêneros. Ele tem propósitos para ambos, e ambos são iguais em dignidade e essencialidade diante dEle e alvo do Seu incondicional amor e cuidado. Ambos são também “por um pouco, menor do que Deus” coroados por Ele “de glória e de honra” (Salmo 8.4). Além disso são igualmente instrumentos úteis nas mãos de Deus; há portanto uma igualdade essencial e funcional entre homem e mulher. Curto: Deus não é ginófobo! O ser humano criado é, no referido texto, alvo de um (auto) diagnóstico divino: “não é bom que o ser humano viva só”! Para Deus um ser humano que vive só, alimenta-se só, trabalha só, se diverte só, decide só e que articula sua abordagem do mundo só, sem interlocutor ou contraponto, está aquém do ideal e do projeto divino. O ser humano que vive portando-se como senhor absoluto da verdade, sem aceitar a convivência com outro como interlocutor e contraponto, preferindo o monólogo e não o diálogo, vive só! Na verdade o primeiro “não é bom” da história humana não foi direcionado ao ser humano criado por Deus, mas à existência solitária! A fim de suprir tal “existência solitária” – e há muitos que vivem assim, mesmo rodeados de uma multidão – Deus providencia a Sua solução: um socorro que lhe corresponda como uma imagem do outro lado do espelho” (hebr. etzer kenegdô).
A expressão hebraica ETZER ocorre 109 vezes no AT, em 102 versos, com 55 formas diferentes. O texto mais paradigmático do uso de etzer é com certeza I Samuel 7: 12: “Então, tomou Samuel uma pedra, e a pôs entre Mispa e Sem, e chamou o seu nome Ebenézer (hebr. eben-ha-etzer = pedra de auxílio) e disse: Até aqui nos ajudou o SENHOR. A forma do texto de Gênesis 2:18 é o substantivo comum masculino singular absoluto homônimo, e aparece 21 vezes no AT. Das 21 vezes, 4 são usadas para o ser humano, 10 para Deus, 6 abstrato ou comum e 1 vez é indefinida. A Versão Corrigida “Fiel” da Sociedade Trinitariana traduz o substantivo masculino singular ETZER de 5 maneiras: ajudadora (2), ajuda (3), socorro (9), auxílio (7) e ajudador (1). O curioso é que a tradução “ajudadora” só ocorre duas vezes, exatamente em Gênesis 2:18 e 20. Minha observação pessoal é que “ajudadora” é uma tradução que dá a idéia de subalternação, de ser a pessoa subalterna, e que a tradução “por socorro” é mais fiel ao original substantivo masculino singular.
A idéia do texto é que o homem só estava em apuros e precisava de um socorro, providenciado por Deus, como diz o Salmo 89:19 - "Pus o socorro sobre um". O livro de Eclesiastes apresenta esse socorro através do outro (4:9-12). Assim ETZER tem o sentido de auxílio, ajuda e socorro, não como inferior ou subalterno, mas exatamente ao contrário, no sentido de estar em condições de auxiliar, ajudar e socorrer quem precisa e está em condição de desvantagem (conf. II Reis 14. 26, Jó 29. 12, Salmo 30. 10, Salmo 54. 4, Salmo 72. 12). O ser humano só “estava em desvantagem e precisava de alguém que o ajudasse, o socorresse, quem o auxiliasse a viver melhor.” O outro, homem e/ou mulher, são para nós esse socorro divino para nos ajudar a não mais vivermos sós! Neste sentido eles são para nós representantes do Deus chamado largamente na Bíblia de auxílio (ETZER). Assim cumpre-se a palavra divina: “Um ao outro ajudou e ao seu companheiro disse: Esforça-te! (Isa 41:6 ARC)”.
Finalmente este socorro providenciado por Deus é qui nagad (na frente de, diante de, à frente de, em frente de). A idéia é a de um espelho no qual, ao se olhar, o ser humano vê do outro lado, outro ser humano semelhante. O homem não pôde encontrar esse outro semelhante entre os animais (Gênesis 2. 20) por isso o outro será chamado “osso dos ossos” e “carne da carne”. É da mesma matéria-prima! Ninguém precisa mais viver sozinho! Ninguém deve viver mais sozinho! Por isso Deus oferece no outro, cônjuge, irmão, irmã, pai, mãe, parente, amigo, amiga, semelhante, um socorro como companhia e/ou contraponto olhado no outro lado do espelho da vida. Por isso, “Deus faz que o solitário viva em família” (Salmo 68. 6), inclusive na família de Deus, a Igreja.
É preciso lembrar que a subalternação da mulher em relação ao homem não é fruto da teologia da criação, mas da teologia da queda. "E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará" (Gênesis 3:16).
3) A TEOLOGIA DA REDENÇÃO PRECEITUA A ISONOMIA ENTRE HOMEM E MULHER.
Essa subalternação de um ser criado ao outro, identificada na teologia da queda, representa uma ruptura da igualdade essencial e funcional, desejada e criada por Deus. Em Sua oração sacerdotal, Jesus orou "para que todos sejam um" (hina pantes em osin - sendo osin verbo subjuntivo de eimi = ser). A oração de Jesus, portanto, era uma expectativa, um desejo, um sonho. Paulo, escrevendo aos Gálatas 3:28, disse: "porque todos vós sois um" (pantes gar umeis eis este - sendo este verbo indicativo de eimi = ser). A expectativa de Jesus parece ter sido realizada na Galácia. E Paulo parece oferecer uma razão para tanto: "Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus."
Em Cristo, afirmou Paulo, não há homem nem mulher, porque todos são um. Ou dito de outra forma: "Todavia, no Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher" (1 Coríntios 11:11).
Há, contudo, dois textos que trazem alguma dificuldade para nós: 1 Coríntios 14:34-37 e 1 Timóteo 2:11e12. "As mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam submissas como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, perguntem em casa a seus próprios maridos; porque é indecoroso para a mulher o falar na igreja. Porventura foi de vós que partiu a palavra de Deus? Ou veio ela somente para vós? Se alguém se considera profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor" (1 Coríntios 14:34-37). "A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão (dedicação, devoção). Pois não permito que a mulher ensine (didasko), nem tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio" (1 Timóteo 2:11e 12).
E, contudo, a Tito (2:3) Paulo escreve: "As mulheres idosas (presbutidas), semelhantemente, que sejam sérias no seu viver, como convém a santas, não caluniadoras (diabolus), não dadas a muito vinho, mestras no bem (kalo-didaskalous) (Tit 2:3 - ACF).
Sem entrar no mérito do uso de "presbutidas", obviamente da mesma raiz de “presbíteros”, Paulo diz que elas devem ensinar, ser boas mestras. Enquanto em Timóteo ele diz que não permitia que a mulher ensinasse, e em Coríntios diz que se as mulheres quisessem aprender que aprendessem em casa com os seus maridos, aqui ele diz que as “presbíteras” deviam ensinar bem, ou como Lutero, ser boas ensinadoras.
É bem verdade que o verso subsequente diz: "Para que ensinem as mulheres novas a serem prudentes, a amarem seus maridos, a amarem seus filhos” (Tit 2:4-ACF). E, contudo, a argumentação de que aqui Paulo estaria dizendo que as presbíteras deviam ensinar tão somente as mulheres mais novas, e não a homens, não explica a expressão clara e geral em 1 Timóteo: "não permito que a mulher ensine".
É bom lembrar que a única vez em que a palavra poimen, pastor, aparece se referindo a seres humanos, e mesmo assim no plural, é Ef. 4.11. Naquele texto o título é pastores-mestres (poimenas kai didaskalous). Nesse caso, ensinar (disdakalia) é a principal função de pastores (poimenas).
Como encarar o ensino Paulino, aparentemente contraditório entre o veto (Coríntios e Timóteo) às mulheres para o ensino por um lado, e, por outro lado, o imperativo (Tito) às mulheres para o ensino?
Penso que a explicação para o veto está no contexto de um pano de fundo, tanto judaico quanto grego, desfavorável à mulher (ela não era uma pessoa, mas uma coisa), à ordenação legal ("como também ordena a lei" - 1 Coríntios 14:34), bem como a posição pessoal de Paulo ("Não permito" - 1 Timóteo 2:11), que era absolutamente honesto quanto às opiniões pessoais ("não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, o meu parecer, como quem tem alcançado misericórdia do Senhor para ser fiel" (1 Coríntios 7:25). Quanto à afirmação em 1 Coríntios 14: "Se alguém se considera profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor". Bem pode ser que Paulo se referisse à sujeição à lei, como "mandamentos do Senhor", e não necessariamente ao veto ao ensino feminino.
Falando sobre as mulheres na igreja, William Barclay diz: “Foi Maria de Nazaré a que deu à luz e educou ao menino Jesus; foi Maria de Magdala a primeira a ver o Senhor ressuscitado; foram quatro mulheres as que, de todos os discípulos, estiveram ao lado da cruz. Priscila com seu marido Áquila era uma mestra apreciada na igreja primitiva, uma mestra que guiou a Apolo no conhecimento da verdade (Atos 18:26). Evódia e Síntique, apesar das desavenças, eram mulheres que trabalharam no evangelho (Filipenses 4:2-3). Felipe, o evangelista, tinha quatro filhas que eram profetizas (Atos 21:9). As mulheres anciãs podiam ensinar (Tito 2:3). Paulo considerava com alta honra a Lóide e Eunice (2 Timóteo 1:5), e muitos nomes de mulheres são mencionados com alta estima em Romanos 16.
Tanto o pano de fundo judaico quanto grego era que a mulher não era uma pessoa, mas uma coisa. Assim, as orientações paulinas são normas transitórias estabelecidas para enfrentar uma situação concreta. Não devemos ler estas passagens como uma barreira à tarefa e serviço da mulher dentro da igreja; devemos fazê-lo à luz do pano de fundo judaico e da situação em uma cidade grega. Todos são aptos para servir a Cristo, Deus quer usar a todos" (El Nuevo Testamento Comentado por William Barclay. Volumen 12 I y II Timoteo, Tito y Filemon. – Argentina: La Aurora, 1983, 74-77).
CONCLUSÃO:
À luz do ensino de Jesus, e também da nossa Declaração Doutrinária, não temos, como seres humanos, competência para decidir se Deus pode ou não chamar mulheres para o pastorado, pois mandar, escolher, chamar e separar são prerrogativas exclusivamente divinas.
À luz da teologia da criação, entendemos que Deus criou homem e mulher iguais, ontológica e funcionalmente, e foram separados como socorro um ao outro, e não para existirem sós e independentes. Não fomos criados nem para independência e nem para dependência, mas para a interdependência. À luz da teologia da queda, entendemos que foi a queda que quebrou esse ideal divino.
À luz da teologia da redenção, entendemos que a expectativa divina é que a subordinação de gênero, tanto na essência quanto na funcionalidade, implantada pela queda, seja superada pela redenção.
Uma teologia bíblica da mulher indica que o critério de chamado divino nunca será o de gênero, mas sempre o critério da Sua Soberania, pois Ele chama e usa quem quer, quando quer e para o que Ele quer.
Assim não posso me manifestar nem contra e nem à favor da consagração de mulheres para o ministério pastoral batista. Sobre essa matéria só posso me render absolutamente submisso à vontade soberana de Deus que chama quem Ele quer: homem ou mulher!
SOLI DEO GLORIA
(http://pastorazenilda.blogspot.com/)
* Extraido de Vigiai (http://vigiai.net/articles.php?article_id=1338)
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