Pra. Silvia da Silva Nogueira
1a. pastora ordenada da CBB, em Julho de 1999
"Paulo (chamado apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus), e o irmão Sóstenes,
À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados santos, com todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso:
Graça e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo." 1 Co 1, 1-3
Mulheres não podem ser pastoras!? Quem traçou a linha (e ainda traça) que
separa para quais "coisas" as mulheres são dignas, ou capazes de ser
e fazer? Quem traçou no ambiente da religião cristã e, mais particularmente,
entre os batistas? O poder de "traçar" uma linha de interdição às
mulheres está em um "outro", não nas mãos das próprias mulheres. O
“outro” tem a favor de si um "poder outorgado por outros", pela
Tradição, pela influência e, às vezes, pelo dinheiro. Este poder de interditar
não foi conferido por Deus, é claro, e, por isso, ele pode e deve ser contestado.
Mesmo para os crentes mais piedosos, é fácil perceber que os assuntos relativos
à fé e ao Sagrado são, na maioria das vezes, tratados também em instâncias
humanas, determinadas pela vontade humana. (At 15,28,entre outros). Essa
leitura correta e madura da realidade religiosa nos ajuda a "testar os
oráculos" e seus porta-vozes. Se parecer para nós que algo sempre foi
assim, não significa que devamos acreditar que continuará sempre assim. É
preciso discernir o poder.
A escravidão, por
exemplo, foi por um longo tempo entendida como "natural", arraigada
no imaginário coletivo e legitimada pela religião cristã. Os contextos bíblicos
em que ela aparece e, a sua utilização pelos próprios judeus, não conseguiram
obscurecer o pressuposto da liberdade humana como um ideal divino. A execração
pública da escravidão, então, dependeu de um conjunto de iniciativas, novas
leituras bíblicas e muita coragem para enfrentar o instituído tanto na mente do
senhor de escravos quanto na mente do próprio escravo. No Brasil, os abolicionistas
eram conhecidos como liberais que ameaçavam a hierarquia da sociedade e os
valores da família branca e burguesa. Os ânimos dos prós e contras eram
inflamados. O argumento de matriz filosófico e teológico mais difícil de ser
vencido pelos abolicionistas não era o de saber se negros tinham alma ou não,
mas a convicção internalizada de que Deus havia criado os negros inferiores ao
homem branco. Eram úteis, capazes de muitos sentimentos valorosos, dignos de
realizar inúmeras tarefas, mas nunca poderiam se colocar em situação de
liderança sobre nenhum homem branco. Hoje, qualquer cristão pode afirmar
sem medo, também como algo "natural", que escravizar um outro ser
humano, por causa da cor de sua pele, ofende a criatura e o Criador. Levamos
muito tempo para entender que o Senhor é deles e nosso.
2014 poderá ser
lembrado como o final de uma longa e perversa resistência a um pressuposto
paulino básico para sua teologia da igreja cristã: o ministério na igreja deve
ser exercido por aqueles e aquelas que receberam um dom do Espírito Santo com o
único objetivo de servir à igreja de Jesus Cristo nas suas múltiplas
necessidades (1 Co 12-13,1). O ministério pastoral é um dos muitos ministérios
da igreja que devem ser ocupados por pessoas vocacionadas, que receberam um
dom, cujo propósito é servir e edificar. Ser pastor ou pastora está, portanto,
diretamente relacionado com a compreensão de vocação, de recebimento do dom
espiritual. A bíblia diz que o Espírito Santo confere os dons, qualquer um
deles, a quem Ele quer, seguindo uma agenda divina própria, incorruptível com
os desejos e determinações humanas (1Co 2,12 e ss). Há muitos exemplos bíblicos
de como Deus age subvertendo ordens, teologias, religiosidades e moralidades da
sociedade. Esse agir de Deus é, este sim, supracultural. Uma espécie de
idiossincrasia divina: trabalhar com aquilo que não pode ser e fazê-lo ser (1
Co 1 e 2). Se para Paulo, apóstolo aos gentios, a igreja é um corpo vivo pela
ação do Espírito Santo e através do serviço de homens e mulheres vocacionados
para variados ministérios, o impedimento ocorrido até agora para a realização
tranquila de concílios para exame de mulheres ao ministério da Palavra e suas
filiações à agremiação de pastores batistas poderia ser considerado um sério
desprezo a forma de agir do próprio Deus ou, quem sabe, ainda, a colocação de
determinações e acordos culturais acima da "loucura do Evangelho".
Nesses 15 anos de
existência formal de pastoras em nossa querida denominação, tudo foi muito
duro. Foi muito difícil ler e ouvir, por exemplo, alguns líderes nos chamando
de apóstatas, homossexuais, dissensoras, destruidoras dos valores da família,
corruptoras do evangelho, entre outras palavras malditas. Eu não me reconhecia
e nem as minhas companheiras de ministério em nenhuma dessas palavras. Amo
Jesus Cristo e amo sua Igreja. Por vocação, sirvo a Ele e a igreja. Por
convicção, sou batista e respeito minha denominação. Não me reconheço, nem as
minhas colegas, em nada que nos ofenderam e nem no desejo de divisão. Pelo contrário,
nós, mais do que ninguém, sabemos que "o cordão de três dobras não se
quebra tão depressa" (Ec 4,12). E para aqueles que ainda desejam
"cartas de recomendação", é preciso dizer que o Espírito Santo e a
igreja de Jesus são a nossa carta de recomendação. A decisão da OPBB, portanto,
chega atrasada no time de Deus, mas chega. Mas ela ainda pode inaugurar
um tempo de reconhecimento e visibilidade institucional às muitas pastoras
batistas brasileiras, pastoreando igrejas, e as muitas mais que virão. Nossos
colegas podem nos ajudar a superar o tempo “duro”; afirmando com a serenidade
paulina que o Senhor é nosso e deles.
Publicado em O Jornal Batista, 17 de fevereiro de 2014
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