BLOG DA PASTORA ZENILDA


Pra. Zenilda Reggiani Cintra
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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

AS MULHERES ESTEJAM CALADAS (FILIAÇÃO DE PASTORAS)

(Texto divulgado à propósito da decisão sobre filiação de pastoras na OPBB-DF. O texto é longo, mas vale a pena ser lido. Publicado na revista Fragmentos da Cultura)

AS MULHERES ESTEJAM CALADAS
João Pedro Gonçalves Araújo*
RESUMO
            Proibidas de falar nas reuniões públicas em suas igrejas batistas no século dezenove no Brasil, a presença feminina na igreja, suas demandas e reivindicações acabaram forçando que o grupo revisasse suas próprias decisões e pontos de vista sobre o silêncio feminino aqui instituído. Como parte do protestantismo puritano, os batistas nas novas terras das Américas herdaram práticas europeias de distinção, isolamento e interdição sobre a mulher praticadas em suas terras. Em virtude do auto entendimento de um povo chamado, se lançaram à tarefa de levar suas crenças a todos os povos. 

Naturalmente que essas crenças estavam baseadas em pressupostos históricos que seus pais herdaram de sociedades civis e religiosas. Dentre essas práticas incluem-se os interditos e tabuizações sobre os candidatos a membros de suas igrejas, e, de forma ainda mais acintosa, sobre  a mulher, seus passos, crenças e sentimentos. Mas como silenciar está muito além do ignorar, o artigo examina e expõe mais particularmente as pressões e impressões que diferentes pessoas tinham e mantinham dentro da comunidade. 

Impor silêncio é mais que anular ou ignorar a presença da mulher. É, antes de tudo, o reconhecimento da presença e de uma possível força que surgia dentro do grupo. Além disso, representa uma tentativa de resolver o problema que já não se podia fazer de conta que não existia, ou seja, responder às indagações as mulheres que queriam falar e daqueles que defendiam que elas falassem na igreja. Sendo praticamente maioria no grupo, as mulheres precisavam ser visitadas, tarefa que exigia a criação de uma comissão de visitadoras e o consequente relatório da visita feita. Para tais visitas, o marido indicava a sua mulher, e, ao voltar, relatava ao marido o resultado da visita. Na reunião da igreja, o marido relatava o que a sua mulher havia dito em particular para ele, em casa. O artigo também mostra que o homem-marido, ao indicar sua esposa, assume a voz de mando, mas, ao dar relatório da atividade feminina, assume o lugar e funções do feminino na comunidade.
Palavras-chave: mulher, batista, indicação, silêncio, dominação

Introdução
            Não é novidade que as religiões, salvo algumas exceções, tendem a tratar as mulheres com reservas ou até mesmo deixá-las alijadas das suas cerimônias. Mesmo uma religião que se propõe libertadora, como o cristianismo, tem atitudes misóginas, excludentes e tabuizadoras quando o assunto é mulher. Talvez por citar versos da Bíblia como corroboradores de suas atitudes, o tratamento que o cristianismo dá para as mulheres seja ainda dominador.
            Protestantes e católicos, a despeito da sua propalada diferença, têm mostrado atitudes semelhantes de afastamento das mulheres de suas reuniões, participação em ministérios ou igualdade nos direitos com relação aos homens. Elas já foram proibidas de cantar durante as celebrações, colocadas em salas separadas dos homens na hora dos serviços religiosos, já lhes foram destinadas uma ala só para elas, e, somente no século XIX a mulher pôde orar em voz alta em uma reunião das igrejas protestantes.
            Buscar as possíveis origens de tais práticas pode tornar-se uma atividade didática para os tempos atuais. Reconstituir e reconstruir a história dos alijamentos e tabuizações da mulher nas reuniões e ministérios da igreja cristã pode ajudar a entender as práticas atuais nas suas diversas igrejas e divisões. Entender ou reivindicar que tais práticas têm bases bíblicas pode parecer uma boa justificativa e até ter o charme de uma interpretação ortodoxa, mas a base bíblica ainda não é um caminho seguro. Primeiro, as diversas crenças dos crentes são determinadas mais histórica e socialmente que através da Bíblia. Na verdade, as práticas no meio da cristandade são construídas a partir de circunstâncias históricas e só depois procuram-se versos da Bíblia na busca de justificar tais práticas.
            Ao longo da história os cristãos acharam muitos versículos que fundamentaram a matança dos habitantes no continente americano. Inúmeros versículos também serviram para a justificação da escravidão dos negros na África. Usando a mesma Bíblia, os protestantes já foram contra o divórcio; depois se tornaram a favor. Muitos conhecem, em virtude disso, as calorosas discussões e os anátemas recíprocos entre cientistas e religiosos quando aqueles, em virtude do crescimento do conhecimento humano, faziam novas descobertas, experimentos ou teorizavam acerca de um saber. A centralidade da terra no universo, sua quadratura e a hierarquização em sentido descendente das criaturas logo se chocaram com o heliocentrismo, a forma esférica e a teoria darwiniana são exemplos suficientes para demonstrar o que venho afirmando.
            O que o cristianismo faz no geral, suas milhares de vertentes o fazem no particular. Para exemplificar, tomemos um ramo cristão, desenvolvido no calor do iluminismo europeu, os batistas. Quando os adeptos desse grupo davam bastante ênfase na direção interior do Espírito Santo na vida do indivíduo, chegaram mesmo a negar àqueles que tinham estudado teologia a oportunidade de pregar em suas igrejas. Naquele tempo – século XVII – a pregação deveria ser feita por qualquer pessoa que trabalhasse durante o dia e não que passasse as horas de trabalho em um escritório da igreja ou em sala de aula de uma instituição teológica. Não satisfeitos com isso, ainda proibiam que o pregador leigo fosse para o púlpito portando uma Bíblia. Segundo acreditavam, Deus tinha que dar toda a orientação, desde o texto bíblico totalmente decorado até a entrega da mensagem, que deveria ser pregada de forma totalmente espontânea.  

[…] a seita atribuía o poder disciplinador predominantemente às mãos dos leigos. Nenhuma autoridade espiritual podia assumir a responsabilidade conjunta da comunidade perante Deus. A influência dos anciãos leigos era muito grande até mesmo entre os presbiterianos […] os batistas lutaram contra o domínio da congregação pelos teólogos […] O domínio dos leigos, em parte, encontrou expressão numa oposição a qualquer teólogo e pregador profissional. Somente o carisma, e não o treinamento ou o cargo, deveria ser reconhecido**,(WEBER, 2008, p. 222).

            Essa denominação, aliás, quando ainda pequenos e perseguidos na Europa, exigiam que um candidato a membro fosse convertido, adulto e que não fizesse parte de qualquer esfera da burocracia governamental, dada a ojeriza que nutriam a qualquer forma de poder. A rejeição a toda forma de poder fez com que acreditassem numa democracia e igualitarismo radicais. Deus era o único que teria poder sobre a igreja. O líder obedecia à voz de Deus sentida ou compreendida pelo povo. A voz povo, então, era a voz de Deus. Quanto à administração de suas igrejas, dirigiam seus negócios por um sistema que se aproximava do presbiterianismo. Com respeito à salvação, oscilavam em duas posições: os batistas gerais e os particulares. Aqueles acreditavam a morte de Cristo teria sido por todos os homens; estes, afirmavam que ele tinha morrido apenas pelos eleitos. O mesmo grupo, se é que ainda podemos considerá-los um grupo apenas, divergiam quanto à forma de batismo atual pois eram aspersionistas.
            Somente com a travessia do Atlântico a partir do século XVI que algumas de suas doutrinas como são conhecidas no início do século XVI se tornaram hegemônicas. O aspersionismo perdeu força e o imersionismo se estabeleceu definitivamente como uma de suas marcas mais distintivas. Os batistas gerais se tornaram mais populares que os da ala calvinista (particulares); do sistema presbiteriano de governo, passaram para a forma atual do congregacionalismo. Mudaram também suas crenças quanto à natureza e o instrumento da pregação. O leigo perdeu espaço para o homem bem letrado, estudioso das Escrituras, o teólogo com tendências intelectuais e de classe média. Sem teologia é impossível pastorear.
            Para todas essas práticas, tanto as atuais, quanto às suas contrárias que foram abandonadas, reformuladas ou substituídas, havia uma infinidade de versículos-prova que as justificavam e conferiam um ar de serenidade, seriedade, infalibilidade e eternidade. Provavelmente nos mesmos períodos históricos outras denominações afirmassem outras doutrinas com praticamente o mesmo número de citações bíblicas. De igual mesmo entre as diferentes denominações, só a auto reivindicação de que o seu grupo é o mais certo, o mais ortodoxo e o mais fiel intérprete das Escrituras. Não à toa os sociólogos da religião consagraram o termo seita para essas igrejas que insistem a afirmar que, a despeito de tantas outras denominações e crenças, a sua é a única denominação fiel e digna de confiança no uso, ensino e citação das Escrituras.

O fim do livre arbítrio
            Quando os missionários norte-americanos vieram para o Brasil trazendo sua mensagem, trouxeram também algumas práticas que se perpetuaram nas igrejas brasileiras. Alheios às questões transitórias e históricas das doutrinas bíblicas vistas em suas terras, acabaram por praticar e ensinar aqui exatamente as práticas que aprenderam lá. Uma dessas, a proibição do uso da voz pela mulher na congregação merece uma reflexão mais aprofundada. É o que nos propomos a fazer aqui.
            É preciso entender, porém, que o silêncio da mulher está dentro de um contexto maior. Logo, antes que examinemos essa doutrina particularmente, precisamos analisar rápida e superficialmente as práticas missionárias da aceitação de uma pessoa na igreja, independentemente de ser homem ou mulher. A partir do livro de Atas de uma das primeiras igrejas batistas do Brasil, a de Salvador, 1882, constatamos que o ingresso de qualquer no grupo era precedido de um exame rigoroso. O candidato a membro precisava mostrar diversas qualidades morais que o qualificasse como bom candidato.
            Lembro, novamente, que essas práticas, ainda que respaldadas por diversos textos escriturísticos, tinham, antes, um fundo histórico e cultural. Quem nos ajuda a perceber tais procedimentos como históricos é Max Weber. Durante os meses passados nos Estados Unidos em 1905, esse autor percebeu os rigores que as igrejas norte-americanas tinham para a aceitação de uma pessoa nas diversas denominações daquele país. Ele notou que a membresia estava diretamente ligada a aspectos sociais e propagandísticos. Um bom membro era a melhor propaganda da igreja diante da sociedade.

As seitas […] uniram os homens através da seleção e criação de companheiros crentes eticamente qualificados […] A seita controlava e regulamentava a conduta dos membros exclusivamente no sentido da probidade formal e do ascetismo metódico […] o sucesso capitalista de um irmão de seita, se conseguido legalmente, era prova de seu valor e de seu estado de graça, e aumentava o prestígio e as possibilidades de propaganda da seita (WEBER, 2008, p. 225).

            Logo, cuidar que cada filiado ou candidato à filiação a uma igreja tivesse uma vida digna é essencial para o respeito da seita e para a manutenção do status que o grupo tinha adquirido naquela sociedade. Vem daí os rigores no exame e vigilância de cada candidato a membro de uma igreja. Se era necessário mostrar altas qualidades para a filiação, maiores rigores eram exigidos depois de aceito.

O membro da seita precisava ter qualidades para ingressar no círculo da comunidade. […] Para manter sua posição nesse círculo, o membro tinha de provar repetidamente que era dotado dessas qualidades, que estavam sendo, constante e continuamente, estimuladas nele. Como a sua bem-aventurança no outro mundo, toda a sua existência social neste mundo dependia de sua capacidade de submeter-se à prova (WEBER, 2008, p. 224).
           
            Esses rigores eram praticados abertamente. O candidato a membro se sujeitava a ser examinado por todos e diante de todos em uma cerimônia pública onde qualquer membro já anteriormente aceito poderia questionar qualquer coisa. Em uma igreja batista típica, por exemplo

[…] a admissão à congregação batista local só é feita depois dos exames mais cuidadosos e das investigações detalhadas sobre a conduta, que remontam à infância, (Conduta inconveniente? Frequência a tavernas? Dança? Teatro? Joga cartas? Falta de pontualidade nos compromissos? Outras frivolidades?) A congregação ainda seguia rigorosamente a tradição religiosa (WEBER, 2008, p. 214).

            Analisar o contexto da filiação batista é revelador, pois esse grupo se considera um dos pais da luta e conquista pela liberdade do indivíduo diante do Estado e da Igreja. Esse grupo entende que o homem nasceu livre e que essa liberdade é um dom divino, inalienável. Essa ideia é uma proposta útil e utilitária para o cristianismo. É necessário que haja liberdade de expressão e de crença para que os pregadores cristãos desempenhem suas funções. Em um Estado centralizador, ou onde vigore os rigores de uma religião hegemônica o sucesso do cristianismo fica comprometido. Para conseguir seus intentos, os cristãos precisam lutar ou sabotar o sistema vigente para poder ser disseminado. Pregar, portanto, supõe algumas condições básicas: liberdade religiosa, liberdade de expressão individual e alguma intelectualidade para entender a mensagem cristã. Foi em virtude disso que o protestantismo em geral sempre lutou pelas liberdades individuais e a separação da Igreja do Estado. O homem é livre e soberano para escolher, segundo afirmam. Daí também entender-se que o protestantismo e o liberalismo são dois lados de uma mesma moeda.
            O patrulhamento congregacional chega mesmo a determinar a intelectualidade do sujeito. O protestantismo teve no livre exame das Escrituras e no sacerdócio de cada crente um dos principais lemas em contraposição ao catolicismo. O homem, livre que era, também tinha o direito de possuir sua própria Bíblia, lê-la e interpretá-la de acordo com os cânones da razão. Sendo sacerdote de si mesmo, não precisava de instâncias reguladoras ou interpretativas das Escrituras. Ele era um livre pensador. Dentro da igreja, porém, ele aprenderá que não é mais tão livre quanto lhe disseram. Logo ele concluirá que o conhecimento bíblico não é imediato, mas mediatizado pela interpretação oficial e oficializante da igreja. Ele saberá o que deverá saber. Se se lembrar, notará íntimas afinidades com o catolicismo que reivindicava ser a Igreja a única a ter uma interpretação correta da Bíblia. O catolicismo ao menos tinha uma única interpretação vinda do papa. O protestante terá tantas interpretações quantas forem suas muitas igrejas. Pior, cada uma afirmará sua posição contra a posição das outras.
            O indivíduo, uma vez aceito, terá comprometida a sua liberdade individual. No contexto da igreja, membresia e livre arbítrio são incompatíveis. Teixeira captou muito bem essa relação quando assim se expressou: “o uso da liberdade individual perante Deus só é possível se o homem não pertence à Igreja. Fora dela, o homem pode aceitar ou não a salvação [...] Dentro dela, só lhe resta um caminho: o de anular-se para que seja possível sua total submissão à instituição” (TEIXEIRA, 1975, p. 189). Aparentemente demasiada a afirmação de Teixeira, contudo, sabendo-se dos procedimentos da igreja em relação àqueles que foram aceitos, vê-se que o rigor aumentava. Tornar-se membro poderia significar muitas coisas, principalmente, ser vigiado. Peter Berger (1977, p. 193) escreveu que as  “instituições [...] reservam-se o direito de não só ferirem o indivíduo que as viola, mais ainda o de repreendê-lo no terreno da moral [...] Geralmente exprime-se num estímulo bastante eficiente, representado pela sensação de vergonha e, por vezes, de culpa, que se apossa do infrator”.
            Algumas práticas da igreja fundada em Salvador e por mim estudada demonstram algum tipo de vigilância: a chamada nominal dos membros para as suas reuniões – principalmente as de negócios, e exigência de justificação em caso de ausência. No caso dos faltosos, a igreja nomeava uma comissão para visitação desses faltosos. Outra medida: tomada de endereço de todos os membros para se manter o fiel sob os olhares da liderança. Em 03 de janeiro de 1884 (Ata 17ª, 8ª Sessão ordinária) foi decidido na igreja em Salvador “[...] tomar o nome da rua e numero da casa e nome dos membros para serem chamados nas secções ordinarias, e deve dar cada um noticia de si, ao menos uma vêz por mêz”. Três meses depois, 07 de abril de 1884 a igreja reconheceu a dificuldade da presença daqueles que moravam longe do local do culto. A visita implicava também em trazer um relatório para a igreja do que foi feito, conversado e o resultado: “[...] A commissão encarregada de ir ao irmão Pacífico Alves do Ó, apresentou motivos justos de desobediencia pessoal d'este para com a Igreja [...]” (PIBB, Ata 111ª, 42ª seção ordinária, 06/09/1886). Os casos de faltas poderiam ser julgados como negligência, como aconteceu em 02 de maio de 1887 (Ata 127ª, 50ª Sessão ordinária), fato que justificou a criação de uma comissão de visitar a um tal de Deomedes. Pensar ou agir de forma diferente do esperado era considerado desobediência e heresia, casos punidos com a exclusão: “[...] Foi cortado da Egreja o irmão Pedro do Ó, por heresias e rejeição da autoridade da Egreja, (Ata 156ª - 65ª secção ordinaria, 02/01/1888).

O rigor do exame
            Os registros deixados nas Atas da igreja de Salvador são elucidativos. Ali, os candidatos a membros são descritos como tendo sido ouvidos, examinados minuciosamente, cuidadosamente investigados, passado pelos exames necessários, perguntados, inquiridos. Algumas atitudes comportamentais poderiam ser proibitivas a que alguém se tornasse membro. Dentre as principais práticas desqualificadoras estavam: fumar, beber, comerciar bebidas alcoólicas, profanar o dia do domingo - trabalhar ou vender nesse dia -, praticar a mendicância. Ser menor de idade necessitava de autorização dos pais ou responsáveis.
            Para convencer a congregação, o candidato precisava ser claro, estar convicto de sua nova posição religiosa, ter o poder de convencimento. Era a congregação que julgava satisfatório ou insatisfatório o depoimento. Mediante o julgamento, alguém propunha a aceitação da pessoa e o restante da igreja votava pelo sim ou pelo não. Os casos que suscitavam dúvidas ou afrontasse a moral do grupo poderiam ser concedido um tempo para que o candidato resolvesse a questão ou poderiam ser rejeitados de forma peremptória. O exemplo a seguir, retirado de Teixeira (1983, p. 151-2) é revelador.

Quanto à sua profissão, respondeu que devido ao seu estado físico, completamente aleijado, vive de esmolas, o que faz nos lugares populosos, em atenção aos transeuntes que lhe estendem a mão. O irmão J. F. fala sobre a profissão de fé do candidato dizendo que não seria contra a aceitação do mesmo, não fosse a sua profissão que torna o evangelho muito humilhante, e uma vez que a Igreja não poderá sustentar o candidato ou arranjar outra profissão, vota contra a aceitação do mesmo, estando porém a qualquer tempo disposto a aceitá-lo caso venha a arranjar outra ocupação mais lícita (TEIXEIRA, 1983, p. 151-2).

            De todos os rigores relativos à entrada de alguém na membresia de uma igreja batista quando o assunto envolvia a sexualidade era ainda mais complicado. O caso de Ribas, logo abaixo, pode revelar que ele já havia feito um pedido para ser aceito na comunidade e deve ter recebido a orientação de deixar seu relacionamento com a mulher com quem vivia até aquela data. Tendo deixado a relação, contudo ainda fazia suas refeições bem como tinha suas roupas lavadas pela ex mulher. Não foi aceito.

[...] para tratar se o irmão Ribas podia ser baptisado, consentindo em vir comer na casa da sua ex amasia e esta continuando a tomar conta por algum tempo da limpeza ou aceio de sua roupa [...] a egreja achou conveniente elle não ser baptisado agora, pelo que um irmão fez moção n'este sentido a qual depois de favorecida foi approvada contra 4 votos (PIBB, Ata 234, Sessão extraordinária 137, 20/09/1892).
           
            Se para ser membro era necessário estar afastado de um relacionamento conjugal não aceito pela moral da comunidade, ser membro da igreja e começar esse tipo de relacionamento era motivo de expulsão. Tal ato representava infidelidade, relacionamento ilícito, má conduta, crime.

[…] o irmão João Baptista […] fallou em termos claros ao Senr. Simões, dizendo-lhe que retirariamos a mão de fraternidade se elle não justificasse o seu procedimento com a Egreja, e deixasse a mulher com quem vivia illicitamente […] Moção para expulsar o Senr Simões da Comunhão da Egreja por causa da sua infidelidade […] viemos a passar da má conducta do errante irmão cheio de crimes e falsidades […] votar a expulsão justa do dito Simões […] votaram todos para que elle fosse expulso, excepto um, (PIBB, Ata 34ª, 13ª Seção ordinária, 07/06/1884).

            A questão sexual e o protestantismo no Brasil teve contornos históricos interessantes. Em parte, os rigores dos missionários sobre a sexualidade e a pertença à membresia de suas igrejas podem ser entendidos, além das restrições religiosas que trouxeram de suas terras, pelos impedimentos da legislação em vigor no Brasil. Somente em 1861 é que o Império decretou que os ministros acatólicos – daqueles ramos religiosos já considerados tolerados – podiam se habilitar para fazer casamentos com direitos civis. Os Decretos 1.144 de 11 de setembro de 1861 e 3.069 de 17 de abril de 1863 estão entre as primeiras legislações sobre o casamento de religiosos não católicos. O Decreto 1.144 tornava extensivo os efeitos civis dos casamentos celebrados de acordo com as leis do Império àqueles que professoravam uma religião diferente do Estado. O Decreto 3.069, a partir dos Artigos 52, além de regular os casamentos acatólicos, também regulava os nascimentos e óbitos de protestantes e outros acatólicos. Ainda assim, algumas autoridades desconheciam ou ignoravam tais Decretos. Um exemplo disso aconteceu em Recife em 1873, quando um subdelegado proibiu uma reunião de protestantes da Igreja Congregacional acusando-os de terem cometido o pecado de prostituição em virtude da realização de um casamento pelo pastor Robert Kalley. Joyce Every-Clayton (2004, p. 458) escreve que o dito subdelegado “nada sabia da lei do Império que autoriza o casamento acatólico”, e, por desconhecer o Decreto “não quis saber ou acreditar” quando os fiéis lhe narraram que podiam realizar o casamento baseados em lei.
            Diversos foram os casos em que um candidato a membro teve que esperar até que sua situação matrimonial fosse resolvida, como foi com a senhora Maria Palmira Gallo. Ter fé e saber expressar-se com desenvoltura, convencer as pessoas da sua conversão ficava em segundo plano quando o assunto casamento não estava ainda resolvido. Sabemos que quando um ato é condição para a realização de outro, aquele é mais importante que o segundo. Dessa forma, o casamento se tornou mais importante que o batismo.
A convite do irmão moderador e pastor Taylor, reuniu-se a egreja em sessão extraordinaria [...] foi apresentada a Senra. Maria Palmira Perª Gallo [...] a qual mostrou exhuberantemente a sua fé [...] mas não foi recebida para o baptismo por morar ainda na casa do seu ex-amasio, e como pretende casar-se com elle, a egreja aguarda o seu baptismo até que se effectue o seu casamento […] (PIBB, Ata 242,  Sessão extraordinária 142, 13/12/1892).

            Outro exemplo, em 03 de setembro de 1885, Maria Magdalena dos Santos pediu o batismo. Ainda que tenha sido aprovada pelo voto da Igreja, a cerimônia foi adiada sob condição de terminar seu relacionamento que mantinha até então. Dois meses depois ela foi batizada. Em outras palavras, a separação cancelava automaticamente a proibição: “[…] para ouvir […] D. Maria Magdalena Dos Santos […] foi recebida, isto é, ficando adiado o recebimento para o dia que terminasse o seu casamento, ser baptisada […] foi baptisada […] no dia 5 de Novembro de 1885”, (PIBB, Ata 79ª, 52ª Seção extraordinária). Mais esclarecedor ainda é o exemplo de Maria Magdalena Bastos (PIBB, Acta 232, Sessão extraordinária 135, 06/09/1892). Ela havia pedido o batismo a primeira vez e fora recusada. A igreja fez algumas exigências que ela deveria cumprir – resolução de sua situação marital. Tendo cumprido com as exigências, já não deveria ter impedimentos. Morando com o seu segundo marido, teve que deixá-lo por recomendação da igreja, porém, quando pediu pela segunda vez seu batismo, tornou ser recusada.

[...] se devia ou não ser de novo ainda a irman Maria Magdalena Bastors. Descutiu-se bastante sobre este assumpto, sendo quasi toda a egreja de parecer que a dita irman fosse unida em virtude d'ella ter vindo arrependida, confessando que a sua segunda união nupcial não estava ou não é authorizada pela Palavra de Deus e que ella conhecendo isto deixou o seu suposto marido; porém o irmão Salomão pastor da egreja [...] não concordou com a união da referida irman, pelo que convidando ao irmão Jorge para tomar assento na cadeira de moderador, fez moção para ella não ser acceita em vista de se achar gravida em consequencia dessa falsa união; a qual moção depois de favorecida foi approvada.

            Um procedimento que se tornou usual foi realizar, casamento e batismo no mesmo dia. Em 1884 o batismo de Dorea e Heduviges foi precedido pela cerimônia de casamento dos dois.

As 8½ horas da noite do dia 9 de agosto do anno corrente […] para ouvir e attender a petição dos candidatos – snr. Dorea e sua Snra. Heduviges […] em 1º logar foi ouvido o snr. Dorea […] foi o dito Snr. Recebido para baptismo […] Em 2º a Snra. Heduviges […] foi recebida unanimemente […] Concluidos estes trabalhos, o irmão Taylor levantou uma moção para ser encerido na acta d'esta secção um voto de agradecimento e reconhecimento ao snr. Dr. Freitas, pelo modo digno e louvavel com que se portou depois do acto do casamento dos irmãos acima mencionados […] irmão Dorea e sua Snrª foram baptisados na mesma noite (Ata 40ª, 28ª Seção extraordinária, 09/08/1884).

            Sete meses depois do casamento de Dorea e Heduviges, Justina e José Cardoso tiveram seu ingresso e batismo adiados até que resolvessem a questão do casamento: “[…] Senra. Justina Francisca do Nascimento […] foi recebida […] Em seguida apresentou-se o Senr. José Cardoso Leão […] foi recebido […] Havendo emenda, para ser adiada a recepção para depois do casamento […] foram baptisados no mesmo dia […] (Ata 67ª - 48ª Seção extraordinária, 22/03/1885).
            Pelo relato a seguir, depreende-se que Daniel Vieira e Anna Maria da Graça foram batizados no mesmo dia em que o pastor Salomão Ginsburg os casou. Primeiro, porém, o casamento, depois, o batismo: “Foram casados religiosamente pelo pastor Salomão os candidatos ao baptismo Daniel Vieira da Silva e Anna Maria da Graça e n'esta occasião foi feita uma moção para a Egreja ser sempre consultada sobre qualquer casamento celebrado pelo pastor d'esta Egreja, sendo approvada (PIBB Ata 228, Sessão ordinária 98, 08/08/1892). José Clodoaldo teve que mostrar um documento de registro de casamento civil realizado no dia anterior para poder ter o seu batismo efetuado:
Depois do culto da manhã […] para ouvir-se José Clodoaldo de Souza […] foram feitas moções para serem os ditos candidatos recibidos […] Foi reconhecido, pela Igreija em seguida o casamento do candidato José Clodoardo de Souza com a senhora D. Cândida das Virgem Leite, o qual teve logar pelo sivil no dia anterior, (PIBB, Ata 258, Sessão extraordinária 154, 28/05/1893).

A QUESTÃO DO RIGOR QUANTO À MULHER                  

            Já vimos, de uma forma geral, os rigores que a igreja fazia para a aceitação de qualquer pessoa entre seus membros. Estavam sob interdição: comerciantes, homens, mendigos, pessoas que moravam longe e aqueles que se afastavam. No entanto, nenhuma forma de rigor se aproximou ao procedimento que a igreja tinha para com as mulheres. Tal fato merece um tratamento especial e é o que nos propomos a fazer agora.
            Desde 09 de outubro de 1883, praticamente um ano depois de ter sido fundada a igreja batista em Salvador, ali se decidiu que as mulheres não podiam falar na igreja. Para remediar a questão do silêncio feminino, a igreja criou uma outra reunião, com cunho social, em outro dia que não era habitual para seus cultos onde elas podiam falar. Parece que a santidade do culto é incompatível com a voz feminina.

Houve uma moção para que se reunissem os irmãos e se unissem em oração cada 3ª feira [...] tendo sido approvado por unanimidade de votos, como clasula de não ser como reunião da Igreja, mas como membros reunidos, onde as irmans podem fallar”. “Foi interrogado por um irmão, porque as irmans não podião fallar nas secções? O senr. Moderador declarou que na acta antecedente já tem uma reunião especial onde as Senras. podem fallar. Foi adiado este assumpto para outra sexção e submettido a consideração de todos os irmãos (PIBB, Ata 10ª, 6ª Sessão extraordinária).

            Há um problema no registro de Ata acima pois que não se conhece qualquer decisão que já tenha sido tomado onde as mulheres poderiam falar. Além disso, o adiamento da discussão do assunto com a promessa para outra sessão não foi cumprida até alguns anos depois. O uso da voz é privilégio apenas dos homens. As mulheres são compensadas com o silêncio. Pergunta-se, então, como seriam resolvidas questões relativas a certas demandas femininas, faltas aos cultos e coisas assim. Em tais casos, uma outra mulher seria designada para visitar a mulher faltante. Foi assim que a senhora Bagby foi encarregada a fazer uma visita à senhora Emilia Maria: “tendo comprido seu dever a irman da commissão para procurar a irman Emilia Maria, a Senra. Bagby, foi desencarregada da dita” (PIBB, Ata 18ª, 9ª Sessão ordinária, 03/01/1884). Essa prática continuou durante os anos seguintes. Em 07 de Dezembro de 1885 uma nova comissão que deveria ser formada para visitar as faltantes. Já sabemos que elas não podiam falar, nem ao serem nomeadas, nem na volta com a entrega do relatório. A saída, nesses casos, era o homem falar por sua mulher e colocá-la na comissão. A mulher, pacificamente, acatava a decisão do marido que era aprovada, naturalmente por outros homens, pela igreja: “tratou-se da irman Saturnina e foi nomeada uma commissão das irmans a ella, pelo que o irmão Antonio Marques offereceu sua mulher, o irmão Borges a delle e o irmão João Baptista a delle” (PIBB, Ata 86ª, 33ª Sessão ordinária). Na volta, da visita, a esposa relatava ao seu marido o que acontecera com a mulher visitada, as conversas, as decisões e a opinião da comissão visitadora. Feito isso, o marido vinha até a igreja e relatava o que sua esposa havia falado em particular. O homem tinha a voz de mando, o direito da indicação para visitar. Depois, tinha o direito de ser o porta-voz da esposa na prestação de contas, em dar o relatório para a igreja. A mulher falava pela fala do marido. Visitar mulher era coisa de mulher por indicação do marido. Criar a comissão, incumbir a mulher da tarefa a ser feita, dar o relatório e propor alguma decisão à mulher faltante mediante o relato da esposa eram tarefas masculinas.
            Em 02 de Maio de 1887 a igreja decidiu criar comissões de mulheres com objetivos específicos de visitarem outras mulheres: “[...] foi proposta outra commissão pelo irmão Antônio Marques, das irmans, para visitarem outras irmans que estão negligenciando o culto publico de Deos”, (PIBB, Ata 127ª, 50ª Sessão ordinária). A longevidade do silêncio obrigatório das mulheres tomada em 1883 perdurou vários anos. Em 1889, seis anos depois, tais práticas ainda se achavam em vigor, como se pode depreender da Ata do dia 12 de maio. O senhor Hilário tinha oferecido a sua mulher. Aprovado o oferecimento, ela visitou a senhora Maria Josepha. Na volta, falou ao seu marido. Ele deu o relatório e propôs a eliminação da dita. Proposta unanimemente aprovada:

[...] a commissão composta das irmans D. Faustina e D. Felismina para investigarem o proceder da irmã D. Maria Josepha declarou por intermedio do irmão Hilario, que a referida irmã não se quizera prestar de modo leal a administração das supra citadas [...] sendo levantada a moção pelo irmão Hilario, para ser eliminada a dita, o que foi unanimemente approvada (PIBB, Ata 162ª, 69ª Sessão ordinária).

            Importações e transplantes
            O rigorismo com os membros em geral e com as mulheres em particular não se originaram no Brasil. É bom que se diga isso para não parecer com aqueles discursos muitas vezes feitos por moralistas protestantes em visita pelo Brasil. Na verdade, o rigor foi uma prática que o missionário trouxe de suas terras. Por lá, a mulher também não tinha muito liberdade na igreja. Uma certa liberdade  de ação para a mulher era algo recentemente adquirido. Parece que Charles Finney (1792 – 1875), por volta da segunda década do século dezenove foi um dos primeiros a permitir a participação da mulher orando em voz alta. A decisão foi tão escandalosa para aquele tempo que muitos protestaram e o acusaram de semear discórdias entre a igreja.
            Depois de Finney, Moody (1837 - 1899) foi o primeiro a criar uma escola de treinamento teológico para moças. Ele fez isso em 1879, ano em que os primeiros missionários batistas estavam praticamente se dirigindo para o Brasil. Somente depois de Moody é que são criadas as sociedades cristãs de moças e outras sociedades missionárias femininas. As primeiras mudanças experimentadas quanto ao papel da mulher nas igrejas norte-americanas ainda estavam começando a dar seus primeiros passos. É provável que nem mesmo os primeiros missionários tivessem conhecimento dessas novas práticas ou que com elas concordassem. Aqui, eles preferiram continuar praticando todas as coisas que tinham visto e aprendido em suas igrejas nos Estados Unidos.
            Mas buscar nas práticas das igrejas norte-americanas o fundamento histórico das práticas implantadas e transplantadas nas igrejas brasileiros ainda é pouco. É possível, então, ir-se mais longe e perguntar se essas mesmas práticas são originárias dos Estados Unidos ou foram implantadas nas igrejas de lá pelos peregrinos vindos da Europa da mesma forma como fizeram os missionários aqui. Raciocinar dessa forma parece um apelo para um regresso ao infinito. Porém, é possível encontrar os germes históricos dessas práticas na sociedade europeia. É o que passamos ver a partir de agora. Para tanto, vamos buscar em outro autor, Habermas, fora do contexto eclesiástico o fundamento das práticas das igrejas batistas.
            A questão da mulher e o rigor com a qual é tratada pode ser vista arqueologicamente na formação da sociedade burguesa na Europa. Para Habermas (2000), desde o século XIII começou-se a se desenvolver a sociedade que tomou as conformações em nosso tempo. A esse tipo de sociedade ele chama de sociedade burguesa. Ainda que não seja objetivo do autor tratar especificamente da mulher, ali aparece, em forma de apontamentos, noções sobre a vida familiar – esfera íntima da esfera privada – e a condição da mulher.
            Na sociedade burguesa ou esfera pública burguesa as pessoas exercem um papel fictício. Na verdade, como tratado por Habermas, a esfera pública burguesa é o local dos homens livres, que conseguiram sua emancipação do poder estatal. Por outro lado, a sociedade de homens livres é a sociedade de possuidores de bens, tanto materiais como humanos. Nesse sentido, a mulher, como as coisas, passam a fazer parte dos bens dos homens. Isso quer dizer que a sociedade ainda pode ser entendida muito particularmente como a sociedade dos homens – do masculino. Essa sociedade chegou onde chegou através da luta contra as autoridades feudais e contra a autoridade real. Para tanto, a literatura exerceu um papel importante nessa mediação. A literatura surgiu, inicialmente, como forma de anotações e registros que os comerciantes, recentemente saídos do sistema feudal, precisavam fazer entre si e para si mesmos. Nessa fase pré-capitalista, era necessário anotar-se as trocas de mercadorias, informações e até mesmo os lucros justos.
            Foi por esse século (XIII) que começaram a surgir as cidades que se destacavam em virtude das realizações de feiras periódicas. Com o tempo, as cidades mais importantes passaram a ter, da categoria de feiras periódicas, feiras permanentes e depois, mercados. Logo se descobriu a necessidade de regulação de troca de mercadorias entre cidades, ou melhor dito, inaugura-se o comércio exterior. A partir de então, surgem os Estados modernos, que acabam por servir como instâncias reguladoras entre os comerciantes. Para exercer o seu papel regulatório, o Estado acabou por forjar sua própria identidade: o uso da força e a cobrança de impostos. Contudo, a literatura baseada na informação e voltada para os negócios, passou a tratar de outros temas. Com isso, ela mesma se autonomizou, dando início aos correios, onde a comunicação entre as pessoas passou a tratar de tudo. Tudo isso faz parte do conjunto de mudanças experimentadas pelas cidades e as novas funções e conformações culturais que daí resultam.
            Com as diversas mudanças nas cidades, o Estado passou a regular as ações, o comércio, a literatura, os jornais, enfim, tudo. Surgiu, por esse tempo, as diversas sociedades – cafés, salões e outros – onde a literatura era discutida. Essas diversas sociedades ajudaram a que surgissem outras formas de associações e de expressão: música, teatro, concertos, lançamentos literários, cartas etc. Para funcionar, elas precisavam de regulações estatais, sem serem, contudo, extensão do Estado. Funcionavam regulamentadas pelo Estado contra o próprio Estado. Tais sociedades tinham na maçonaria a forma e origem de existência.
            A esfera privada, nesse caso, representava a reunião de pessoas privadas reunidas em um espaço público com a proteção e regulação governamental. Na França e na Alemanha essas sociedades procuram superar as desigualdades sociais que se vivia na vida dentro do Estado. Fora do Estado todos eram considerados iguais, prática que talvez se justificasse suas reuniões em segredo e com proteção legal do poder estatal. Elas precisam de legitimidade e garantias de funcionamento. Essa igualdade social, juntamente com a polidez do trato, o abandono da sacralidade dos temas a serem tratados estão entre as principais características dessas sociedades.
            Mesmo que essas sociedades – teatros, salões, cafés, igrejas – fossem baseadas em uma certa pulverização das desigualdade de classes, elas mantinham, porém, critérios rígidos para que alguém delas fizesse parte, dentre as principais: ser adulto, ser aceito, saber discutir, ter posse. Nessas reuniões discutiam de tudo, da vida privada à economia, vida social e política. Inicialmente, a crítica se baseava nas obras literárias. Era necessário, portanto, possuir o domínio da razão para a participação do indivíduo. Talvez, por isso, as mulheres estavam alijadas de tais sociedades.

Discute-se o público em público sem a onipresença do poder público. Assim, o raciocínio nascido das obras de arte e políticas, logo se expande também para disputas econômicas e políticas, como nos salões, garantindo a sua inconsequência imediata. A isso também pode estar relacionado o fato de que à sociedade dos cafés somente eram admitidos homens, enquanto que o estilo do salão, todo rococó, era essencialmente marcado pela influência feminina. As mulheres da sociedade londrina, abandonadas a cada noite, também ensaiaram então uma luta enérgica, mas inútil contra a nova instituição, (HABERMAS, 2000, p. 48).

            O alijamento da mulher da sociedade burguesa, e por consequência, da sociedade dos homens pode ser justificada através da natureza secreta de tais sociedades. Ser fechada ao público em geral, ao governo e especialmente à mulher, pode ser uma herança vinda de uma das mais antiga das sociedades secretas europeias, a maçonaria. Sem se afirmar definitivamente que o silêncio da mulher na igreja protestante seja uma herança adquirida da maçonaria, não se pode, contudo, descartar tais ideias. Sabemos que em algumas igrejas as mulheres, quando admitidas, sentavam-se em lugares especiais ou em separado. O silêncio, porém, lhes era exigido.
            Ainda que não se afirme diretamente a descendência maçônica das práticas misóginas da igreja protestante, não se pode negar-lhe pelo menos alguma influência. As igrejas protestantes, como as demais sociedades formadas contemporaneamente à Reforma, tinham seus rituais para participação de seus frequentadores: ser adulto, não participar em qualquer esfera do sistema governamental, fazer uma profissão pública de fé e ser batizado. A participação nos rituais das igrejas – principalmente das seitas – como a ceia, era ainda mais parecido com os rituais das sociedades secretas.
            Ainda se pode ver outras semelhanças entre a igreja protestante e as sociedades secretas – coffee houses, salões – como o ato de mandar cartas informativas entre elas, como aconteceu com as firmas comerciais que se internacionalizavam. Além disso, como a igreja protestante tende a esposar a mentalidade de classe média, da mesma forma que se faziam distinções sociais para se aceitar como membro de uma das sociedades europeias, distinções sociais – saber ler, por exemplo, ou ser empregado – distinções semelhantes foram feitas a quem postulava entrar numa das igrejas. Assim, da mesma forma que os cafés herdaram os temas que a aristocracia e intelectualidade europeia discutia, a igreja, em suas reuniões de negócios – sessões – discute, com suas portas fechadas, seus negócios internos.
            A igreja, por mais boa vontade ou romanticamente se olhe para ela como agente divino, não se pode negar que ela esposa as mentalidades que a sua própria historicidade vive e lhe apresenta. Tanto a apresentação como a sua historicidade são elementos norteadores e limitadores daquilo que a igreja vê, compreende e faz no seu presente. Não é segredo, portanto, que a igreja imita, em parte, as práticas sociais da sociedade, tanto das pessoas como das organizações comerciais, políticas e econômicas do seu tempo.
            Por tudo isso, ainda que a igreja reivindique achar versículos bíblicos e basear suas práticas em tais versículos, suas práticas são, acima de tudo, ligadas à história. Isso serve para suas interpretações quanto ao fato de o negro ter ou não alma, dos pobres, da justiça social, política, econômica e das mulheres. Não é segredo, por exemplo, que os batistas, desde o seu surgimento, já passaram do calvinismo para o arminianismo, do presbiterianismo para o calvinismo, do avivalismo para o tradicionalismo, da rejeição do governo na Europa para ser governo na América do Norte, de aspersionistas para imersionistas. Em cada uma dessas fases, essa igreja reivindicou basear-se em princípios infalíveis e hermenêutica saudável no manuseio da Bíblia. As mudanças, contudo, não são rápidas e pacíficas. Como a sociedade burguesa habermasiana, formada por homens livres do poder estatal, as mudanças no interior de uma igreja como a Batista se dá através dos séculos, com discussões podendo décadas – algumas duram pouco tempo – e através das lutas entre os diversos grupos e seus interesses.
            Elias (1993) no entanto, vai ainda mais longe. Sua abordagem histórica acerca das relações entre homens e mulheres chega até o século nono. Segundo escreve, a sociedade europeia daquele tempo caracterizava-se pelo homem cavaleiro, dono de terra, guerreiro, portanto, sem qualquer necessidade de mostrar atitudes de cavalheiro. A delicadeza, principalmente em se tratando de mulheres, não era vista como uma virtude. Segundo Elias (1993, p. 76) a sociedade medieval tinha, em todo lugar, fortes traços da dominação masculina, e, ao mesmo tempo, um “parcial eclipse das mulheres”. Esse autor é de opinião que as questões tidas como fundamentais e até necessárias nas relações entre os homens nos séculos vinte ou vinte e um são fruto de séculos em que os costumes foram se modificando e as pulsões e paixões passaram por um processo vigilância muito grande.
            Ainda que se conheçam relatos de que, desde o século doze em algumas cortes na França a mulher tinha tantas oportunidades quanto o homem, como ser senhora feudal, possuir propriedades e até desempenhar papel política. Mas, devido à função guerreira, o que predominava era que o homem, seja ele camponês ou rei, não era dado a tratar a mulher com qualquer recato. Em todos os casos, o homem mandava e não se faziam quaisquer disfarces para que o mando masculino fosse, de alguma forma, velado ou particular. Ele não fazia distinção entre sua esposa e outra mulher, principalmente se fosse de classe inferior. Naqueles tempos, a mulher sofria de um desprezo explícito. Não eram raros os relatos de esposos que espancavam suas mulheres, como no seguinte relato de Elias (1993, p. 75-6):

Parecia ser um hábito, quase tradicional do cavaleiro, enraivecendo-se, socar a esposa no nariz até o sangue correr. “O rei ouviu isso e a raiva coloriu-lhe o rosto; erguendo o punho, atingiu-a no nariz com tal força que tirou quatro gotas de sangue. E a senhora disse: “'Meus mais humildes agradecimentos. Quando lhe aprouver, pode fazer isso novamente”.

            Nesse tempo, ouvir o conselho de mulher, mesmo sendo esposa, era vergonhoso. O homem que ouviu conselhos de uma mulher era expor-se a ser censurado. A sociedade medieval deixava bem claro o espaço do homem e da mulher. A qualquer mulher que ousasse se dirigir ao homem com alguma sugestão deveria ser lembrada de que seu lugar era nos aposentos mais íntimos da casa, junto com outras mulheres. “Senhora, retire-se para o seu lugar e coma e beba com sua corte em suas câmaras pintadas e douradas, ocupe-se em pendurar cortinados de seda, pois esse é o seu mister. O meu é cortar com espada de aço” (ELIAS, 1993, p.76). O lugar da mulher era a câmara enfeitada, na privacidade de seus aposentos, o do homem, a guerra
            Ser cortês, naqueles tempos, ter uma atitude cortesã, só em casos excepcionais. Quando tais atitudes se davam, ficavam restritas aos círculos das grandes cortes feudais. O normal, naquele tempo, era a atitude brutal e desrespeitosa para com a mulher. Segundo o nosso autor, essas atitudes duraram até cerca do século dezesseis. Enquanto a sociedade era dominada por uma classe guerreira, militar e agrária, prevaleceu a dominação acintosa do homem sobre a mulher.  Daí não ser tão estranho que a sociedade da qual Habermas trata dar conta de clubes e sociedades masculinas que vedavam à mulher qualquer participação, como vimos anteriormente.
            A modificação no comportamento e no trato foi-se modificando lentamente ao longo dos séculos em que o comércio e o uso de moedas foram sendo popularizados, à proporção que as cidades foram crescendo em volta da corte, quando a sociedade não precisou mais viver em função da guerra e o cavaleiro passou a estar mais presente na sua própria sociedade. Essa mudança do centro de gravidade das relações nas cortes foi motivo também para uma lenta mas contínua mudança nas relações entre o homens e mulheres. Como explica o nosso autor (1993, p. 77-8): “em todas as ocasiões em que homens são obrigados a renunciar à violência física, aumentou a importância social das mulheres”. A mulher, portanto, ganha mais importância a partir da existência de uma sociedade pacífica. Nesta ela pode estudar, cultivar uma vida intelectual e voltar-se para áreas como estética e luxo.
            Na sociedade da qual Elias se dedica a expor, sociedade dominada pelo homem, as relações afetivas também precisam ser vistas naquela perspectiva. Não só o tratamento físico tendia a ser violento, quanto a demonstração de sentimentos também era inexistente.

[…] homem a conter suas pulsões e a impor-lhes controles. Pouco se falava de “amor” na sociedade guerreira. E ficamos até com a impressão de que um homem apaixonado teria parecido ridículo nesse meio de guerreiro. De modo geral, as mulheres eram consideradas inferiores. Havia mulheres em número suficiente e elas serviam para satisfazer as pulsões masculinas nas suas formas mais simples. As mulheres eram dadas ao homem para “sua satisfação e deleite […] O que eles procuravam nas mulheres era o prazer físico e, à parte isso, “dificilmente se encontrava um homem com paciência para aturar a esposa” (ELIAS, 1993, p. 78).

            As relações afetivas como demonstração de amor, o elogio à beleza feminina, para esse autor, acontecia quando o homem de classe inferior se referia à mulher mais elevada socialmente. Nos outros casos, prevaleciam a dominação, não os afetos “era apenas o relacionamento de um homem socialmente inferior e dependente com uma mulher de classe mais alta que dava origem à contenção, à renúncia e à consequente transformação das pulsões […] o que tornava a mulher inacessível, ou acessível apenas a duras penas e, talvez porque fosse ela de classe mais alta e difícil de conquistar, especialmente desejável” (ELIAS, 1993, p. 79). Por esse relato vê-se que o sentimento e a linguagem do amor tiveram um contexto todo particular. Tão raro nas eras medievais, com o tempo passou a ser uma atitude essencial nos relacionamentos entre homem e mulher nas sociedades mais recentes. Dito de outra forma, a cortesia nas relações do homem e da mulher teve o seu fundamento entre os membros socialmente mais dependentes da sociedade em relação a uma mulher pertencente a uma classe socialmente superior.
            Georges Duby (1996), é outro autor que pode nos ajudar na formação e formatação desse imaginário masculino sobre a mulher. Esse autor fez uma pesquisa buscando descobrir o que as mulheres faziam no século doze na França, o que falavam, como riam, como se comportavam. Pouca coisa descobriu. As mulheres não “falavam”. Os homens falavam dela. E mal. A mulher era a portadora do pecado. Cabia ao homem manter-se afastado dela. A mulher não apenas tinha trazido o pecado ao mundo através de Eva, ela aumentava o pecado através de seus pecados. No seu livro, Duby mostra os escritos dos teólogos e doutrinadores do século doze ensinando os homens a como se portar e comportar diante da mulher. E, quando se dirigem à mulher, estão cheios de recomendações e recriminações. Lembremos aqui que no século doze é praticamente impossível pretender que algum outro autor ou conselheiro que escreva o faça longe dos mosteiros ou das catedrais europeias.
            Nesses escrito, o homem, era sempre o possuidor da razão, a mulher, possuidora da inconstância, do pecado, do fogo, das tentações. O homem, possuidor de direitos. À mulher cabia a resignação e o entregar-se. Ser dominada e domada era o destino da mulher. Por isso mesmo, para o homem manter-se puro, não lhe ficava bem os bons modos, as boas maneiras. Mostra disso está num conselho dado aos homens sobre as maneiras corretas de se aproximar de uma mulher. “Se, pela sua categoria, tiver mais privilégios do que ela, pode sentar-se junto dela sem lhe pedir licença; se for da mesma categoria, pede-lha e, com o seu acordo, senta-se perto dela, mas nunca sem isso”, (DUBY, 1996, p. 161).
            À mulher são atribuídos os piores pecados da humanidade, principalmente aqueles referentes à sexualidade. Já que é colocada em posição inferior em relação ao homem, explica-se porque os homens tinham tanta liberdade quanto ao sexo. O sexo é um privilégio que o homem pode usar livremente, ao passo que tais direitos eram negados à mulher a ela. “Se, por acaso, tiveres atracção por labregas, evita lisonjá-las” - escreve um teólogo, monge e capelão chamado André no final desse século, 1186 - […] se encontrares ocasião favorável, não hesites em satisfazer o teu desejo, toma-a pela força […], é preciso obrigá-las e curá-las do pudor que têm”, (DUBY, 1996, p. 160). Se o homem tiver vontade de possuir uma mulher, pode forçá-la a ter relações com ele contra a sua vontade. Um homem, ao obrigar a mulher, ele estará lhe fazendo um favor, curando-a do pudor que ela porventura venha a ter. A atração que um homem viesse a sentir por uma mulher de classe inferior, não devia, no entanto, ser manifestada de forma visível. Homem de classe superior estava proibido de sentir afeição ou amor por mulher inferior. É preciso, portanto, evitar os elogios, o carinho.
            Agora, não estamos mais diante do marido que pode espancar sua mulher até lhe tirar o sangue. Isso faz parte de uma legislação posterior, já faz parte dos bons modos. Estamos tratando de um tempo em que o homem, contanto que seja socialmente superior à mulher, pode tomar-lhe a satisfazer-se. Aqui não inclui qualquer ligação familiar. Não envolve sentimento. Impera a vontade, o desejo. Não é o marido que tem a autoridade sobre a esposa, é o homem dotado de vontade que usa sua posição social para satisfazer-se.
            As relações românticas ou a presença do sentimento amoroso da mulher para com o marido ou do marido para com a esposa deve ser experimentado com cuidado. Apaixonar-se demais pela esposa é pecado, recomenda o monge André. O homem que ama muito a sua esposa adultera contra ela, pois começa um amor dividido, pela esposa e por Cristo. Por sua vez, a mulher não deve amar muito a seu marido, visto que, espiritualmente, ela pertence a outro marido, o marido espiritual, Cristo. Ela deve entregar seu corpo a seu marido mas tendo sempre em mente que deve entregar seu espírito ao outro marido, ao outro senhor. Dessa forma, a mulher é sempre esposa de dois maridos, um carnal e outro espiritual.
            Pelo fato de a mulher ser sempre condenada desde o éden por sua luxúria, ela perdeu o privilégio de ter prazer na sua sexualidade. Portanto, deve viver para seu esposo e satisfazer-lhe os desejos, que são santos. No entanto, ao homem é dado o privilégio de poder experimentar relações sexuais com outra mulher além da sua esposa. É o próprio André, monge e teólogo quem pergunta e responde acerca do compartilhamento do corpo da mulher com outro homem e do homem com mais de uma mulher.

Será permitido a uma mulher dividir-se por dois amantes? Claro que não. “Isso é tolerado nos homens porque está nos seus hábitos e porque é privilégio do seu sexo realizar de boa vontade o que, neste mundo, é desonesto por natureza. Mas numa dama, o pudor que a reserva do seu sexo exige torna esta conduta tão culposa que depois de se ter dado a vários homens se torna indigna de ser admitida na companhia das damas” (DUBY, 1996, p. 179, itálicos meus).

            Os comentadores, professores, juristas, doutrinadores do século doze eram, todos eles, padres, monges e bispos. Eles formavam uma classe de homens diferente dos outros homens. Homens de Deus. Homens, por conseguinte, superiores aos outros homens. Homens que, ainda que vivendo neste mundo, não são deste mundo. Homens assexuados. São exatamente esses homens, espirituais, homens de Deus, sem mulher que ensinam e interpretam o mundo para os homens deste mundo, homens do mundo e no mundo, homens que vivem com e entre as mulheres. São esses homens que, em boa parte deles, nunca experimentaram o sexo com uma mulher, sentem, no entanto, no corpo os mesmos desejos de um homem normal. Por isso mesmo, a mulher passa a ser sempre um espaço de tentação, sujeitas, portanto, a todo tipo de julgamento depreciativo, negativo. Homens de Deus que têm medo de mulheres. Misóginos. No entanto, são esses mesmos homens que orientam, dão a base e a sedimentação para que o homem que tem mulher ou que com ela se relaciona saiba como se comportar, saiba o que e como fazer com a mulher. De alguma forma, a relação e o imaginário ocidental moderno sobre a relação homem e mulher tem um fundamento religioso, o fundamento católico. O protestantismo não mudou nem sugeriu qualquer mudanças nessa relação. Como tantas outras coisas, adotou algumas práticas do catolicismo que rejeitava como práticas dentro de suas igrejas. 
           
CONCLUSÃO
            Investigamos os fundamentos da proibição da mulher falar em uma reunião pública da igreja batista em Salvador, para tanto, nossa hipótese inicial era que tal prática doutrinária não tinha necessariamente uma origem bíblica, segundo alegavam os batistas. Ter origem bíblica e ter fundamentação bíblica nos parece ser duas coisas bem diferentes. As práticas, sejam elas quais forem – escravidão, pena de morte, proibições alimentares, casamentos e divórcios – podem ter uma base escriturística, mas são essencialmente históricos. Aplicaram-se diversos textos bíblicos para fundamentar tais práticas. Porém, todas as outras práticas que substituíram as antigas tiveram, igualmente, outros tantos versículos que fundamentavam a mudança e instalavam as novas práticas.
            A proibição da mulher falar na igreja veio para o Brasil como uma doutrina das igrejas dos Estados Unidos. Naquele país, conforme já pontuamos, somente permitiram que as mulheres orassem em voz alta no século dezenove. Foi nesse século, provavelmente em virtude das condições sociais impostas pela guerra civil, que se permitiu que as mulheres servissem como enfermeiras, professoras ou missionárias. Mostramos que a prática das igrejas norte-americanas tiveram como fundamento o costume que se praticava nas sociedades, lojas, clubes e salões da Europa. Nesses salões, as mulheres eram até mesmo proibidas de frequentar, herança de uma sociedade feudal, senhorial e guerreira onde os homens tinham o direito divino de mandar e o direito social de tirar sangue do nariz da esposa. Em reconhecimento, a mulher precisava agradecer ao marido por lhe fazer este bem.
            A proibição protestante trazida da cultura norte-americana era igual à praticada pela cultura católica portuguesa – tecida num ambiente machista e moura. O que um povo proibia pela Bíblia o outro proibia pelo costume. Por motivos diversos, católicos e protestantes criam e ensinavam as mesmas coisas. Ambos acreditavam no poder divino do homem sobre a mulher. Um mandava pela força física, o outro acreditava fazê-lo pela imposição de uma “fundamentação” bíblica. Não foi difícil ao convertido brasileiro santificar algumas das práticas que já fazia por costume, por tradição. Essas práticas, contudo, agora estavam santificadas e autorizadas em virtude do uso da Bíblia. Nesse ponto, católicos e protestantes se descobriram irmãos.

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*             Mestre em Ciências da Religião (UMESP), Doutor em Sociologia (UnB), Pós-Doutorando (PUC/GO), professor na Faculdade Teológica Batista de Brasília (FTBB) e professor convidado da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: profarau@gmail.com
* * Já Smyth, Amsterdã, exigia que ao pregar o regenerado não tivesse sequer a Bíblia à sua frente.

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